Todas as histórias começam assim e esta não será diferente. O que me
proponho com este texto é descrever a minha visão do aparecimento e crescimento
da seleção nacional feminina. Podem questionar-se o porquê de ter decidido
agora dedicar umas linhas a este tema. Pensem neste texto como um tributo
pessoal a todas as jogadoras que lutaram ano após ano por melhores condições
que conduziram ao lugar onde se encontra a seleção nacional atualmente. Além
disso, na minha humilde opinião todas as antigas jogadoras devem ver
reconhecido o seu esforço. Adicionalmente, a minha decisão também se justifica por
si só no facto de não ser um conto de fadas e os primeiros tempos terem sido
difíceis com inúmeros obstáculos. Que possa servir de exemplo a não repetir por
mais nenhuma instituição que queira promover o futebol feminino.
O primeiro jogo da seleção nacional disputou-se em França, a 24 de outubro
de 1981 e o resultado final foi um empate sem golos. Não é uma história antiga
mas revela que Portugal esperou 36 anos para se qualificar para uma grande
competição (EURO 2017, na Holanda).
Nesta primeira década, a seleção nacional disputou 8 jogos (entre 1981 e
1983). O futebol feminino encontrava-se em franco desenvolvimento pela europa
fora e os resultados alcançados demonstravam que Portugal estava no bom caminho
para se tornar uma seleção forte na europa. Eu vi o meu primeiro jogo da
seleção nacional em lisboa, a 4 de dezembro de 1982. Tinha 11 anos e já jogava
futebol num clube de bairro. Recordo-me perfeitamente de ter pensado “um dia
vou querer representar a seleção do meu país”.
Mas, sem qualquer aviso, a Direção da Federação Portuguesa de Futebol
decidiu suspender a atividade da seleção nacional. Foi uma decisão catastrófica
como veremos mais adiante. Mas, o mais estranho desta decisão foi que o
Presidente da FPF à data era membro do Comité de Futebol Feminino da UEFA. A
decisão não foi entendida por ninguém e por largos anos a evolução do futebol
feminino nacional ficou adiada. O sonho das jogadoras foi ceifado, continuaram
a jogar o seu desporto de eleição mas sem qualquer esperança de um dia
representarem a seleção nacional.
As jogadoras portuguesas tiveram que esperar dez anos para que os
seus sonhos se tornassem novamente realidade. Assim, em 1993, pela mão de Carlos Queiróz, assiste-se ao retomar da atividade da seleção feminina. O
seleccionador nacional escolhido foi o magriço António Simões, um dos melhores
jogadores portugueses de sempre, que integrou as fantásticas equipas do SL
Benfica e da seleção nacional, que em 1966 participou no mundial de Inglaterra,
onde alcançou um brilhante 3º lugar.
"Record" setembro 1993 |
Para o primeiro estágio de observação, realizado em setembro de 1993, foram
chamadas 66 atletas. Como se compreende, o seleccionador nacional e restante
equipa técnica não tiveram oportunidade de ver as jogadoras a atuar nos seus
clubes de forma que a responsabilidade de indicar quais as atletas a convocar
foi delegada nos treinadores dos respetivos clubes que competiam no
Campeonato Nacional.
Neste primeiro estágio de observação as jogadoras foram separadas em várias
equipas e jogaram todas umas contra as outras. Foi a forma encontrada pelas
várias equipas técnicas da FPF para conseguirem observar todas as jogadoras em
ação e, desta forma, reduzir o enorme grupo num mais pequeno.
No segundo estágio de observação já só foram convocadas 35 jogadoras. O
objetivo era conseguir reduzir o grupo às 25 melhores jogadoras nacionais e,
desta forma, iniciar a qualificação para o europeu de 1995, que se iria
realizar na Alemanha.
Mas, antes de começar a qualificação para a competição referida, Portugal
realizou um encontro particular contra a seleção da Suécia sub 20. Foi o
primeiro jogo após 10 anos de interregno. As jogadoras estavam nervosas e
sentiram o peso da camisola mas sentiram-se orgulhosas assim que o hino
nacional começou a ecoar nos altifalantes do Estádio S. Luís, em Faro. Esse
sentimento foi transversal aos espectadores presentes, muitos deles jogadoras e
ex jogadoras. Eu era uma delas. Eu não fui seleccionada para o grupo final de
25 jogadoras e reconheço que estava bastante desanimada nesse dia mas nada
disso era importante comparando com a emoção de ver a seleção nacional voltar
novamente ao ativo. Finalmente, o sonho tinha-se tornado realidade e eu teria a
oportunidade de poder representar o meu país. A responsabilidade de merecer uma
oportunidade por parte da equipa técnica era minha. E iria fazer tudo que
estivesse ao meu alcance para que ela aparecesse.
O resultado não foi o desejado (Portugal perdeu 0- 3) mas permitiu-nos
perceber que os 10 anos de interregno de competição foi o pior inimigo para o
crescimento.
"Correio da Manhã" novembro 1993 |
O primeiro jogo oficial após 10 anos de interregno foi realizado em Faro, a
11 de dezembro de 1993, contra a França e a contar para o apuramento para o
campeonato da Europa de 1995. Mais uma vez, fiquei de fora das opções do
seleccionador nacional mas desloquei-me ao Algarve para assistir ao jogo.
Portugal perdeu mas fez um grande jogo, nunca se amedrontando contra uma equipa
de nível superior, de tal forma que se não soubessem do nosso interregno
ninguém diria que era o primeiro jogo ao fim de 10 anos.
A seleção nacional perdeu os 4 jogos seguintes. Estávamos em fase de
construção de uma nova equipa, a diferença entre várias selecções europeias era
enorme, especialmente as selecções nórdicas (Suécia, Dinamarca e Noruega),
França e Alemanha. No entanto, as jogadoras portuguesas nunca desistiram e
procuraram incessantemente a vitória. Nesta altura, os objetivos para a equipa
eram definidos jogo a jogo. O primeiro era marcar um golo (que veio a ocorrer
no jogo em Fiães, em março de 1994, contra a toda poderosa Itália).
"Record" março 1994 |
A primeira vitória ocorreu na 1ª edição da Algarve Cup (à data designada de
Mundialito de Futebol Feminino), no longínquo ano de 1994, contra a Finlândia,
após derrotas nos jogos de grupo contra os EUA e a Suécia.
Na qualificação para o EURO 1995 Portugal alcançou 3 vitórias, duas contra
a Escócia (no jogo realizado em Sterling a falta de hino nacional foi o mote
para a primeira vitória fora e no jogo em casa, em Almeirim, a primeira goleada
infligida pela seleção nacional 8 -2) e contra a Itália, no jogo realizado em
Carrara. Foi um escândalo mas a vitória foi inteiramente merecida. Por vezes a
falta de humildade e o menosprezo por equipas de nível inferior proporciona este
tipo de vitórias. Itália provou do seu próprio veneno). Razão tinha o seleccionador
nacional…
"A Bola" junho 1994 |
A equipa continuava o seu processo de crescimento mas teve sempre que
enfrentar inúmeras dificuldades. As mais evidentes eram a falta de estágios de
observação ou a realização de jogos particulares. Era frequente a seleção não
se juntar por mais de 6 meses o que condicionava o nosso crescimento
sustentado. Não sei se alguém que nos lê alguma vez sentiu o querer fazer mais (e
melhor) e o corpo não responde às nossas ordens. Infelizmente senti isso mais
vezes do que desejaria em muitos jogos. A sensação de impotência foi algo que acompanhou
nos períodos iniciais quando em confronto com as melhores jogadoras mundiais. Mas
era com estas que podíamos crescer, com aquelas que nos causavam dificuldades e
desafiavam todas as nossas qualidades. Não tenho qualquer vergonha em assumir
que a seleção portuguesa, não tinha condição física para jogar 90 minutos. A nossa
condição física era suficiente para a competição interna (campeonato distrital e campeonato nacional) mas era débil e longe do exigido para os jogos
internacionais. Era frustrante mas o pensamento das jogadoras foi sempre “temos
que melhorar, é imperioso que consigamos mostrar que temos qualidade para
ganhar a algumas das melhores equipas”. Porque, no final o que conta e fica
registado é o resultado. E não era muito agradável somar goleada atrás de
goleada.
Até ao final da década 1990-1999, Portugal conseguiu, pela primeira vez,
qualificar-se para os jogos de playoff
tendo em vista o Europeu de 1997 (Noruega). Foi, sem dúvida, uma importante
conquista para o futebol feminino nacional e acabou por o mote para
continuarmos a crescer e melhorar o nosso desempenho. Não conseguimos a
qualificação (o nosso adversário, a Dinamarca seguiu para a fase final da competição)
e Portugal teve que esperar até 2017 para viver esse momento único, 20 anos
depois. As sementes levaram 20 anos a crescer! Mas agora não há volta possível.
O único caminho é seguir em frente e continuar a crescer!
Nesta década, a seleção nacional disputou 69 jogos (vitória 15; empate: 6;
derrota: 48) e teve dois seleccionadores nacionais. O já referido António Simões
(1993-1996) e Graça Simões (1996-2000). Ambos realizaram o seu trabalho
o melhor que conseguiram com as poucas condições disponibilizadas pela FPF na
altura. Mas, ainda assim, Portugal foi crescendo, ainda que timidamente. Não há
qualquer hipótese de comparação para o que existia há 30 anos para o que é
realidade nos dias de hoje. Por vezes penso até onde aquele grupo de jogadoras
podia ter chegado se tivessem disposto das atuais condições. Mas é um exercício
inglório pois as mudanças observadas ao longo dos últimos anos foram tantas que
é utópico sequer pensar em comparações. O legado da Graça Simões foi conduzir
Portugal, mais uma vez, aos jogos de playoff
para o Europeu de 2001 (Alemanha). Mas, no final da época de 1999/2000 o seu
contrato de trabalho não foi renovado e um novo seleccionador nacional foi
apresentado e orientado a seleção portuguesa nesses dois jogos, Nuno Cristóvão. De igual
modo, Portugal não conseguiu a qualificação mas melhoramos o registo anterior,
ao alcançar uma vitória no jogo em casa, disputado em Portalegre, sob condições
meteorológicas adversas e impróprias para a prática desportiva, fosse ela qual
fosse.
A década seguinte deveria mostrar o crescimento da seleção nacional mas na
verdade não foi o que aconteceu. Em julho de 2003 foi elaborado o primeiro
ranking para selecções femininas pela FIFA. Portugal ficou colocado na 34ª posição. O trabalho desenvolvido pelo seleccionador
nacional Nuno Cristóvão foi de enorme qualidade e foi sob proposta sua (e
aceite pela FPF) que surgiu pela primeira vez uma seleção de formação, na
altura sub 18, que daria lugar posteriormente origem à de sub 19. Esta foi
outra enorme conquista para o futebol feminino nacional e permitiu à nova
geração de jogadoras (grande parte integra atualmente a seleção feminina que
tão boa conta tem dado de si) a oportunidade de iniciar o crescimento internacional
mais precocemente. Mas, mais uma vez, quando as selecções começavam a dar
mostras do seu crescimento e outras medidas iam sendo desenvolvidas, o seleccionador
Nuno Cristóvão cessa funções na FPF, no final da época 2003/2004. O período
mais negro, de sempre, da selecção nacional estava para chegar.
PrintScreen sítio internet FIFA |
O novo seleccionador nacional, José Augusto (2004-2007), que foi colega
de equipa do António Simões no SL Benfica e na seleção nacional foi o
escolhido. E, durante o período que esteve em funções, a seleção nacional caiu
da 34ª para a 47ª posição. Foram tempos complicados em que a insatisfação e
desilusão das jogadoras era difícil de esconder. Os 3 anos que o Sr. José Augusto
comandou a seleção nacional causaram os mesmos estragos que os 10 anos sem
competição. Era necessário, mais uma vez, renascer a seleção nacional. Se
não acreditam no que digo (que é legítimo), olhem novamente para a figura do
ranking. Foram precisos mais 10 anos para subirmos até ao 36º lugar, onde nos
encontramos atualmente. E pouco mais há a acrescentar, a não ser que foi uma
péssima decisão (na altura) da direcção da FPF interromper o trabalho que estava
a ser desenvolvido pelo anterior seleccionador.
No período compreendido entre 2000 e 2009, a seleção nacional disputou 94 jogos
(vitória: 19; empate: 13; derrota: 62).
De 2007 ate 2011, foi apresentada a nova seleccionadora nacional, Mónica Jorge,
que até então fora treinadora adjunta e que tinha entre mãos a delicada (e
enorme) tarefa de reverter todos os estragos causados pelo anterior seleccionador
nacional. Mónica Jorge manteve-se no cargo ate ao final de 2011, altura em
que integrou uma das listas que concorreu e venceu as eleições para a direcção da
FPF. Atualmente, é Diretora da FPF para o futebol feminino. No período de
transição, a seleção nacional foi orientada por outros treinadores nacionais
(Susana Cova, Pedro Roma,..), tendo num curto período regressado António Violante,
que tinha sido adjunto de António Simões, no regresso da seleção em 1993. Finalmente, em fevereiro de 2014, é apresentado o atual seleccionador nacional,
Francisco Neto, que já antes tinha colaborado com a FPF na qualidade de
treinador de guarda-redes.
E, concorde-se ou não, foi com a Mónica Jorge na direcção da FPF que se
alcançaram os melhores resultados desportivos e o crescimento foi sendo
consolidado:
- Qualificação para a fase final do EURO sub 19, 2012 (Turquia);
- Qualificação para a fase final do EURO sub 17, 2013 (Inglaterra);
- Qualificação para a fase final do EURO 2017 (Holanda);
- 3º Lugar na Algarve Cup 2018 (Portugal);
- Início de atividade de selecções de formação: sub 16 (2014) e sub 15 (2017);
- Desenvolvimento das competições nacionais;
- Aumento do número de praticantes em todos os escalões etários;
- Envolvimento das associações regionais para a importância e relevância do futebol feminino nacional no panorama desportivo;
- Criação de uma nova competição, Supertaça Allianz;
- Reorganização de competições nacionais sub 19 e sub 17.
Podia continuar a enumerar mais algumas medidas desenvolvidas desde que
a Mónica Jorge assumiu o cargo na direcção mas creio que o mais importante é
salientar que ela enfrentou as mesmas dificuldades e barreiras que todos os
anteriores seleccionadores de forma que ela sabia o que era preciso fazer para
inverter o cenário. Naturalmente que não fez tudo isoladamente. Toda a direcção
da FPF está comprometida com o crescimento e desenvolvimento do futebol
feminino nacional e apoiaram as mudanças necessárias. E os resultados estão a
aparecer, não só na seleção sénior mas também nas selecções de formação.
MJX - dados retirados do sítio da internet FPF |
Mas,
a questão que se impõe: estamos efectivamente a crescer ou será apenas mais um período
bom? Não, a seleção nacional está efetivamente a crescer! Se analisarem o
gráfico rapidamente perceberão que estamos a reduzir a percentagem de derrotas
e a aumentar a percentagem de vitórias. Não menos importante é observar o
aumento do número de jogos disputados de uma década para a outra. Na minha
opinião, juntamente com a melhoria altamente significativa das condições de
treino e apoio da FPF, é o aumento dos confrontos internacionais que está a
permitir a seleção portuguesa de crescer com consistência. De 2000-2009 (94
jogos) para 2010-2019 (121), a selecção nacional já jogou mais 27 jogos que na
década anterior. E este valor vai, obviamente, aumentar. Podem ainda relembrar o que já foi escrito neste blogue sobre este tema e rever uma versão condensada desta história.
De
qualquer forma, a FPF terá que dar um passo seguinte: envolver e auxiliar os
clubes para que estes possam oferecer melhores condições às jogadoras. Pode parecer
que não é responsabilidade direta da FPF assumir este papel, mas se assim não
for, dificilmente se pode dar o salto qualitativo seguinte. Bem sei que temos
dois clubes da Liga NOS (Sporting CP e SC Braga), em que as jogadoras são
profissionais e dispõe de condições de excelência para desenvolverem o seu
trabalho. Mas não é nem será suficiente. A tendência, se nada for entretanto executado,
é para piorar. Estas duas equipas não vão conseguir absorver todas as jogadoras
que começam agora a despontar levando a que estas tenham que procurar outros
clubes (nem mesmo que criem equipas B, algo que o SC Braga já dispõe). Basta
pensar nestas gerações que integram as atuais selecções jovens. Se estivesse no
lugar delas iria procurar e exigir melhores condições no meu clube. Eu iria
querer continuar a desenvolver as minhas capacidades e competências. Mas sei
que para isso, não posso treinar somente 3 vezes por semana e em alguns dos
casos, terei que repartir o campo com outra equipa do clube. Além que
precisaria de outro tipo de aconselhamento uma vez que todos os detalhes são
importantes e irão diferenciar-me entre ser uma boa jogadora ou uma jogadora de
excelência.
Estou
em crer que este será o próximo desafio para a FPF, para as associações
regionais e para os clubes: como podemos potenciar a qualidade e
competitividade das nossas competições internas (Liga, Taça de Portugal e
Supertaça, bem como as competições de formação) e com isto permitir que as
nossas selecções nacionais alcancem melhores resultados ano após ano!
Ambas
estão relacionadas!
Acredito
que estamos no caminho correto. Acredito, também, que não há retorno possível
que nos faça cair, mais uma vez!
End of story!
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